quinta-feira, 15 de julho de 2010

Balada pré-nupcial

E quando eu morrer de amor
que não morra o amor em mim
que haja ainda o marfim
de um sorriso sem dor
No quarto paire uma névoa
supondo teu cheiro doce
eu sem ser, como se fosse
o primeiro amor de eva
Do éden, talvez expulso
por um deus de sal e siso
invejoso dos impulsos
dos humanos paraísos
Descanse a loucura do dia
dorme que sofro sozinho
depois lhe escrevo poesia
depois eu bebo outro vinho
Pois nessa cidade de lava
onde todo mundo queima
só a noite que me salva
e quase sempre me condena!

Vê, tanta estrela lá fora
sozinhas no gelo do espaço
rainhas de mil auroras
mas nunca nenhum abraço
Tão bonitas, as meninas
altivas vestes azuis
que meu verso desvirgina
nesse universo de luz
É grande a solidão noturna
a nossa e a das estrelas
enquanto um cometa afunda
na treva mas sem rompê-la
É dúbia essa condição
de desespero e esperança
dormiremos feito crianças
desfeitos dessa aflição
Vê, uma estrela dança
fingindo ter par e apaga
Ninguém viu sua valsa
Deita comigo... Descansa!

Tens frio na fina pele
Ronrona feito felino
O olhar desliza e me segue
chorando igual violino
Um dedo teu que resvala
no meu peito sem camisa
se encolhe logo, se cala
e a face azul ruboriza
Um arrepio nos percorre
eriça a virília acesa
sobe por delicadeza
espasma na nuca e morre
O ar te escapa entredentes
No lábio, silente convite
e ainda assim me resiste
tentando fazer-te ausente
Na frase boba, disfarça
cedendo quase ao cortejo
sedenta, prossegue a farsa
calo tua boca num beijo!

Os Anjos

Céu. Céu! Pequena morte
no paraíso. Vi os vitrais
quebrarem e os anjos da paz
fugirem rindo - torpes
de amar seu deus.

Arcanjos sob os arcos
das pontes. Os vi orando,
as mãos unidas ante os lábios
e as faíscas da fé brilhando
em suas frontes.

Vi as auréolas luzindo!
Flores azuis de fumaça
desabrochadas dos cachimbos
pairavam com muita graça
sobre as cabeças em transe.

Os pequenos serafins
de frágeis mãos estendidas
tinham asas retorcidas
e piedade sem fim
da humanidade descrente.

Nas sombras da catedral
ouço a harpa dedilhada...
Outra hóstia foi tragada
pelo vulto angelical
que agora recebe as bençãos.

Após a última prece
o anjo retira as vestes,
se cobre com as asas
de abutre e volta pra casa
celeste.

Pertencimento

Esse chão de madeira macia ou pedra chapada
que tão humildemente recebem meus pés sem sapatos
Esses milhões de hectares, aquelas montanhas
e entre elas, entre suas pernas - o vale
e toda a vida profusa no veio dágua, filete de sol
correndo as manhãs geladas. Esses animais serenos, comendo a erva da terra
se refazendo do barro, se comendo aos berros
sem qualquer embaraço... Esse imenso terreno baldio
e suas árvores de mil braços, cada uma com mil olhos
verdejantes sensíveis ao vento e também suas sementes
e seus frutos suculentos, ahhh, pros meus dentes!
As moradas dos homens, de ferro e cimento de pau
e palha de telha e vidro de papelão. Cada pequena
janela mirando um retalho de paisagem
e também cada paisagem com todas as suas janelas!
Esses campos arados e a ceifa terrível, os caminhões
quase sempre tombando aos navios imensos, hidras
rasgando o vento sobre a lâmina dágua! Essa água
toda de sal e a água viva das nuvens e a água virgem das fontes
e as pontes sobre os rios que as cruzam! Todo, todo vinho das adegas, segredos
guardados pelo beijo das rolhas, a alma das uvas e os vinhedos.
Os sabores das coisas, das coisas todas as coisas sem alma.
O terno elegantíssimo, a bengala bem polida, o chapéu altivo,
tão engraçado! As fachadas coloridas dos puteiros
que as crianças amam mas seus pais frequentam.
Essa cama de areia no lábio do mar e as ilhas erigidas no nada,
as quilhas engastadas no fundo do oceano. A reunião das estrelas,
os satélites vagantes na espiral do delírio humano, os mil vezes
cem bilhões de anos do cosmos colorido!
Toda e qualquer cantina, cantinho de gula, doces caseiros,
celeiros de milho, a comida lançada ao lixo!
Os livros adormecidos nas estantes lustrosas, a poesia e a prosa
de vinte séculos, essa imensa síncope de imersão ciclópica!
Os corações das multidões maciças, das solidões voláteis.
Aquelas catedrais de altares fúnebres e as bacias douradas
de água benzida, que boas pra matar a sede. Todas as riquezas
bíblicas, Salomão cantou-as, vede!
Também a arte dos povos, a tinta dispendida em visões obscuras,
incríveis e puras, tão fúteis e amáveis. Os inumeráveis salões
de baile e os pingentes pendentes sobre o seio das mulheres,
pedra opalescente, lágrima da rocha, pérola dormente
à mão do ourives desabrocha.
A fênix dos penhascos cantando a morte do fogo,
a revoada dos pássaros de um verão ao outro.
A campina dos leões, a estepe dos lobos, a sebe do esquilo
e a ravina do corvo, qualquer bioma possível e a biosfera toda!
As pirâmides espetando o céu
na mata e no deserto, não tão notáveis quanto os castelos
dos insetos - colméias suspensas, galerias subterrâneas.
E as miragens litorâneas na hora que o sol evade!
Os territórios sem grades, a evaporação das cercas e o carnaval
das cidades. E mesmo a dor subcutânea e insondável, tão comum
à alma humana, a dor vã e indevassável...
terei tudo tudo
todas as coisas
e só porque não comprarei nada
e de nada serei dono!

Serviço Militar Obrigatório

O vento sempre morde a ponta das bandeiras e arranca os fios desfeitos
deixando o farrapo sujo chacoalhando nas nuvens, infeliz de dar risada.
Ninguém se comoveu do trapo tremulante e o mastro já engasta seis
enfeites de ferrugem e atiça a cobiça de alguns que sobrevivem do ferro
da sucata da lata. Brilham estrelas depois da bandeira a verdadeira
estrela inflama a flâmula e faz cinzas do auriverde a verdadeira estrela
tem mil pontas desordeiras tem protesto é um protesto contra tudo é o
fim do medo. Postura ereta baqueta histérica mão no peito a fronte séria
Pelotão! Fuzilamento! Canta o hino verborrento sob o quepe do sargento
três mentiras numa estrofe e alguém se agita e grita - toquem a lira
suburbana! Geme o couro do tambor tambor geme rindo o tambor tambor
rindoritmo tambor tambor tambor tambor Dançam maracatu sobre os coturnos
o surdo emudece a trompa e a bateria acompanha empenhada o toar da
zuada tambor tambor tambor tambor tambor... A poesia é minha pátria!

Balada das Calçadas

São tão estranhos os dias
Nas ruas ninguém namora
As vejo, sem companhia
Subindo a Ladeira Aurora
Desfilantes manequins
Vos acompanho vidrado
Minhas flores de calça jeans
Meus anjos sem dom alado
Distantes figuras deusas
Andando pelas calçadas
Intocáveis e indefesas
Contentes por cortejadas
Pintadas de branco e preto
Vermelhos pincéis nas bocas
Insinuai vossos peitos
Sob os rendados das roupas
Pintada de preto e branco
És Nefertiti, eu te vejo
Bailando inaudível tango
Sem nunca inventar o beijo
Tão sorrateira te ausentas
Como a fagulha de brasa
Que solta, sozinha, no vento
Rapidamente se apaga
Quisera fosse comigo
Pra cama doce do amor
E fosses por ter sentido
Um instintivo clamor
De seres a fêmea eterna
E logo despisse a blusa
E abrisse-me tuas pernas
As pernas que não descruza
Soltando um sopro de dor
Dor tenra a se converter
Na tensa carne, em calor
Na rubra gota, em prazer
Tens tanto medo de amar
Sois frustradas afrodites
Deusas urbanas do mar
E do amor que não existe
Nós, os poetas, morremos
De não poder ensinar-vos
Vossa vocação de vênus
Gingando por entre os carros
Vão pelas ruas do tempo
Crispados bicos de frio
Tantas ladeiras descendo
Sem reparar no assobio
Partindo pra nunca mais
As lindas musas mundanas
Tirai de mim toda paz
Transeuntes paulistanas!