sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Página de Luz e Sombra




















Ah, não se engane, porque os olhos se acostumam com o escuro e logo enxergam cores, sim, na sombra. O silêncio é um envelope de envelopes, presta atenção, que ao fundo, muitos sons se movem, lúdicos. Percebe que a solidão tem muitas portas, por onde os gatos entram vagarosos e vem se reunir aos pés da lua, mas não se assuste, a morada dos dias tem janelas de vidro que dão na rua dos sonhos. E a lua lhe pareceu distante, era o doido diamante no fundo do mar. Agora indagas, com ela nos braços, emergiste das ondas ou mergulhei no espaço? Cuidado, o espaço fez-se manta de retalhos sem costura. Olha como se aproximam os montes de farinha da alameda dos riachos, a terra foi dobrada em desalinho, geografia é uma caneta sobre mapas. Não preocupavas do amor, vinhas vazio, mas lembra-te da concha na baía? Que canção infinita na espiral vadia? Não, não chore, é só seu coração que também canta, por mais que não conheça esse lamento. No mar nunca adormece a maresia. Então entende, o escuro tem a benção do impossivel, vê como dois olhos condensam na treva, sente os cabelos delirantes lhe ferindo os dedos, o perigo iminente no traço reticente da cintura, mulheres atravessam véus de tempo e vem sentar na cama dos perdidos. Elas sempre foram pássaro, sabias? Bem mais do que a imagem, a magia! Maquínas tua mente, se prende! Te construíram uma cidade dourada sobre alicerces fantasma, cidade fadada ao abismo, pra onde vão os filosófos sem esse abrigo de séculos? Além, o pensamento rasteja, eleva e transborda, impregnado de vida e nunca percebês-te que escrevias tantos livros. Nesse jardim mal cuidado, ninguém cortou arestas da hera nos telhados, vês como o tempo ganha dimensão selvagem e vês a ti próprio animal na relva, bastou teus semelhantes não te verem, bastou não virem ao teu encontro, que tanto medo do escuro? Que tanto medo do mundo? Que indiferença com a lua! Enquanto termina o cigarro, no ato final da brasa, estende teus olhos ao céu, escuta o comboio rugindo numa distância impensável, queres mordê-la ganindo corpo alma e corpo (te lembra das mentiras na festa) e sentes que é mais afeito aos lobos!

O Desejável Berço do Mel

Preciso desembrulhar meu coração em palavras.

A pouco me atingiram olhos, fatais como relâmpagos
Eram lâminas em rosto doce de felina
De menina crescida, traiçoeira, hipnótica
Aprendendo a brincar com a tolice dos homens
A tolice infinita, minha grande virtude.
A pouco me dobraram dois olhos
E como não bastasse descompassar meu fôlego
Arquearam meus braços para recebê-la
Poema afetivo de lábios fendidos
Movendo-se lenta na atmosfera vermelha
Com cabelos proibidos amarrados num cacho
Com seios miúdos de framboesa lúdica
Com mãos melódicas descansando no ventre
A trufa sutil, de pelúcia e jasmim
Delineada em nanquim. Uma flor em segredo.
A pouco me cortaram da calma, dois olhos somente
Sem pairar palavra ou iminente toque
Cometeu-se pecado. E a luxúria emudecida
Foram os desenhos de tinta na pele
Foram as coxas gêmeas, tão claras
Foram os gestos nascidos na infância
Tudo em segundos furtivos de vida, desencontrados.

Eu só posso estancar meu coração em palavras.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Kiwi Kiwi

Pele de camurça
ratinho da terra
tua carne, entanto, é verde
igual lagoa matutina
Doce, macia
botando água na boca
e estrelinhas
crocantes.

O Levante














A correnteza dos ventos levou o moinho
quatro pás, passarinhos, vararam todo o céu mosaico
dilacerando as nuvens iluminadas sem rosto
No entreposto dos anjos malditos, nasceu um grito!
Montanhas distantes descortinaram retalhos
de galhos e folhas e rios correndo livres no infinito
Em cada vão de sombra o som do grito, do grito
abençoado dos malditos... Cães latiram liras
pela estrada de poeira e o rolar das cachoeiras
tamborilando nas pedras, pela selva o eco dos macacos
fazendo algazarra no ôco das árvores! Os que vagueiam
farrapos, imundos foragidos do Massacre de Canudos
Os nuncas, os nulos - de asas soerguidas entre estrelas
amassadas! As defloradas silentes! Os sem casa - pingentes
mais revoltos da cidade... Num afluente de vozes frias
Como fantasmas peregrinos que acordassem com corpo
Como poemas, se desprendendo dos livros em espasmos
de tinta! A lua baixou dois braços, dois riachos
azuis e arrancou as estátuas de pedra e atirou
os monarcas no abismo! Um trovão liberto percorreu
seis desertos, deixando rastro de espelhos
e uma canção que dança! Amor, como sorriram
os dias, quando a criança e a canção deram mãos
e dançaram, atravessando outono, primavera
e verão para a quinta estação, onde os trens se encontram!
Amor! Como vamos sorrir, os loucos, quando a criança
crescer numa vila de paz e a lua descer da noite
com um ramo de raios para coroar a menina
princesinha sem trono!

Alinhamento

Aos que vivem no quase
e com um só pé
cruzam as portas

Aos que param na véspera
Esperando os sinos da tarde
Esperando filhos ferverem
ou anjos cruéis de julgamento
e morte...

A esses enclausurados
em celas numéricas, nos calendários
migrando de jaula em jaula
Ao banho de sol no sábado, ao mar no feriado!

Atrasam o relógio do peito
dois minutos antes da vida
e levam um ar de esperança
como a aposta contida
que nunca colocam na mesa
pra nunca dar-se perdida...

Mas que tristeza é deitar-se pra que o sono não venha
e casar-se depressa antes que o amor chegue
e lamentar-se do inverno que cobrirá seu jardim
antecipando o fim, antes do fim, que fim?

Hoje, sozinho, na estrada borrada
sou pesadelo de rio
refletindo seus olhos

Pequenos fogos castanhos!

Eras exata no tempo.
Eu queimava lento, em pensamentos
Num quase beijo disperso
quando mordeste meu lábio
no sangue...

Paredes ruborizam de luar
Os carros naufragam na distância de sempre
Alguns se inclinam pra tornar-se sombras
mas os sopros do sax derretem ao fundo
e eles sabem que a vida e inevitável

Palmilho as calçadas sem ver
Alguém me dá a mão, juntos no instante
pra ganhar ou perder...
E ao vê-los nos bares, ainda cismo
que procuram trago a trago
algum abismo

Também persigo tolo essa pureza
e às vezes, num relance, nossos corpos
parecem ser quimeras de asas presas

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Cantar Contra os Reis

É preciso ser de amor
último abrigo dos pássaros
na tempestade.
É preciso ser livre
porque a lua é livre
e rios não são rios
se represados
e um dia vi a fúria amarga
nos olhos de um tigre
preso.
É preciso ser de paz
sabem disso o pai e a mãe
quando abençoam seus filhos
cerrando os olhos
no portão de casa.
Sabem mais os avós
destemidos da morte
como é triste temer
a vida, temer a noite
e o outro.
Mas sabemos,
é preciso também
ser de luta
para honrar a farinha
do pão que se come
e honrar o trigo apartado
da terra e ainda mais
os homens que ceifaram
o trigo, a custo
de tanto suor
que não se pode medir
em cascatas ou lagos.
Cravar os pés na areia
quando o mar golpeia,
e o mar é forte.
Cantar um amor
mas não calar se a lei
for silêncio.
Resistência começa
quando é preciso lutar
pela liberdade,
quando só coragem afina
a viola exilada
quando o pássaro vôa
através dos relâmpagos.
Em tempo
de tanta liberdade roubada
será preciso escolher
entre viver
ou sentir vergonha desse pão
que devoras com pressa
no esconderijo
de vidro.

Embolia

Não mais o pão seco que assombrava
minha mesa matutina.
Rasgador de garganta, cegando
o punhal afiado dos meus versos
como eu mordesse pó
sem copo dágua.

Emergi da sua carne
engolindo ar, enchendo os pulmões
doloridos. Vinha do mármore oceânico,
onde anêmonas profundas
me matavam docemente. Voltei
com frio e fome. Ainda nu
quando me vi nas ruas
de carros corriqueiros, de cheiros
e cortiços. Desvencilhava-me,
sentindo o carinho das algas
no calcanhar e as traiçoeiras pernas
de polvo num dolente abraço úmido.

Meu precipício de sonhos partidos!
Por quantas primaveras me manteves
congelado? Meiga prisão de vidro
onde deitei escravo da beleza impune!

Sinto agora minha pele descolar da tua pele, sem rasgar-se.
Ignoro teus lábios como um velho idioma desaprendido.
Vejo tua voz morrer em pequenos vórtices de sombra.
Para voltar à superfície sob um sol desfolhado.