quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Coroa do Morro

Tenho a impressão
de que os barracos
de madeira e papelão
vão pegar fogo
quando o sol vermelho vivo
se esconde atrás do morro

A favela então revela
sua estranha silhueta
no recorte de telhados e antenas
contornado por uma franja
de luz rosa e amarela e laranja

Como é colorida a coroa da tarde
estandarte do Sol poente
Como é bela a favela incandescente!

Mas o morro não está em chamas
o fogo não queima a favela
quando a noite chega, tudo se apaga
e uma sombra é lançada
em cada bar, cada viela

Então vem as estrelas
aparecendo aos montes
são as lâmpadas das casas
cometas raptados
que escapam da janela
pra acender o infinito
e ganhando a escuridão
vão pontilhar o horizonte

O que diz a razão

Nessa busca insensata
da magia de viver
vi quão racional eu era
de sempre só fazer
entre tudo que se pode
aquilo que me dá prazer

São eu sei que sou
os loucos são vocês

Me diz o que há de insano
em ter 17 anos
crer na revolução
beijar a boca da vida
e querer matar meu patrão
Não há nada de loucura
em tentar afrouxar os laços
da nossa vida tão dura

ainda juram, meus amigos
que há algo errado comigo

Mas o que devo fazer:
me furar com uma agulha
e ir gotejando
enquanto o tempo vai passando
e a morte faminta lambe
cada gota do meu sangue?

Esquece! Eu não consigo
tornar-me morto-vivo!

Sobre esse peito
repouso minhas mãos
e sinto o pulsar
do meu coração
o ar do pulmão
me rasga a garganta
agora vos digo
escutem meu grito

Eu não consigo
tornar-me morto-vivo!

Chamam de loucura
amar a poesia
e seguí-la por filosofia
mas não se esquece a liberdade
que um verso te deu um dia

Vamos de peito largo
na contramão da histeria
tecendo a vida, lado a lado
emergindo desse lago
de água falsa, velha e fria

Antes explodir
que morrer de asfixia!

O Tudo e o Nada

Eu sou a água
na boca do cangaceiro
banhando o arruaceiro
eu sou o cheiro de mar

Estou no vento
que vai movendo o veleiro
kamikaze anti-mongol
eu torno tudo passageiro

Destilo fogo
qual passagem pro inferno
queima queima babilônia
com mais lenha, sou eterno

Eu crio terra
onde comem os animais
faço esculturas de barro
retratando os imortais

Matei Hades e Anúbis
não poupei nem o diabo
pra não sofrer com a morte
pois conheço meu passado

Fui explosão
gigante dos povos nórdicos
costela de Adão
o famoso filho pródigo

Fui o início
hoje linha de chegada
semente do universo
vôo e não deixo pegadas

Olho pra frente
edifico minha estrada
se tenho nada, sou tudo
ao ter tudo, não sou nada

O Canto do Velho

Brasil
barracos
barrancos
Um velho de branco
sentado no banco da praça
observa o campo de futebol
desbota a retina
nas cores do sol

Sozinho
em seus pensamentos
vasculha a memória
alguns fragmentos
e velhas histórias
senis devaneios
dos tempos de outrora

Sozinho no canto
vai perdendo o encanto
esquece do samba
não lembra dos cantos
só tem a saudade
e a fé no seu santo
então vem o pranto
o amargo pranto
do antigo boêmio
sozinho no canto

Vingança

Essa noite me vinguei de ti
por todas as vezes que invadiste meus sonhos
que roubaste meu sono
que me arrancaste da cama arfante
que me acordaste bem antes do sol nascer
mesmo sem saber, mesmo sem querer
tantas vezes tornaste mais lírico o vil descanso
trouxeste acalanto a meu mundo onírico

Mas não hoje,
viu que me deitei contigo e acordei distante?
Essa noite invadi sua noite
entrei no seu quarto, na sua cama, sob seus lençóis
entrei no seu corpo, acariciei teu rosto
beijei teu pescoço e além
deslizei mais um pouco, derreti na sua boca
mas desfeito, sumi...

Agora aí parada na cama bagunçada
tenta remontar as imagens dissipadas
do sonho que tivera ainda pouco
o mais etéreo encontro
onde um poeta vindo do outro lado da cidade
lhe fazia companhia numa fria madrugada
quando fora abandonada, totalmente solitária
na prisão da realidade
Agora fica aí, sonhando acordada

Então acorda minha querida estou chegando
a saudade vai-se embora
a dor já da por despedida
outro dia vem raiando, estou chegando
então sorria
não podemos viver só de sonho
mas sei que posso ser um sonho em sua vida

Poema impróprio

A poesia não tem dono
seria muita pretensão
rogar que a mim pertence este poema

Os versinhos andam soltos, quase vivos
se apresentam em forma de problema
e eu, no meu intento criativo
vou solucioná-los num esquema
e quando emplaco torna-se possível
gravá-los numa folha de caderno
tento apanhá-los, se consigo
aliso até que possa inscrevê-los
vencendo o tempo velho e invencível
criando, do efêmero, o eterno

Se tudo é contínuo, indivisível
porque diabos não se explica esse mistério
de recriarmos para sempre as mesmas cenas
(forjadas num passado liquefeito
nos átomos de um tempo já desfeito)
cada vez que forem lidos tais poemas

Se amanhã

Se amanhã
seus lábios me negarem um beijo
meu coração
irá a ti como um cortejo
Agradecido
por ter vivido um grande amor
e arrependido
de não ter evitado a dor
Meu tambor
não pulsa mais de tão ferido
Vão-se os cantos
que o peito entoa, esquecidos
Já te vejo em pranto
protagonizando o adeus
e suas lágrimas
rolando então, nos olhos meus
Vai-se o amor
ficam a memória e o desejo
se amanhã
seus lábios me negarem um beijo

Menina, menina

Não se esqueça
de abrir suas cortinas
de acender a lamparina
quando aquela menina
vier dobrando a esquina
corra já pros braços dela
essa menina, essa menina
tem saia de colombina
e os pés de cinderela

Chama ela, chama ela pra dançar
pra se acabar na batucada
num boteco a madrugada
se estende até que os tambores
chorem todas suas dores
depois caiam embriagados,
de mãos dadas vá pra casa, vá pra casa
e na esquina pare um pouco
e dê um beijo na menina

Não se esqueça
de fechar suas cortinas
de apagar a lamparina
tão logo essa menina
iluminar toda a noite
com seu corpo de mulher
dilate bem suas pupílas
pra gravar na retina
esse sonho de menina
que enfim desatina
a flor, a bailarina
fazendo amor num ballet

Desinteria

Botões que nunca viram primavera
despetalam-se na espera
de desabrochar pro mundo
Quedam as flores,
no chão jazem mortas
sem cheiro, sem caule
sem pólen, sem cor
decompondo no solo
terão paz precocemente
e jamais provarão o beijo
no bico do beija-flor

Cicatrizando

Tem essa saudade de você
que chega sem dizer
e bate pra ferir
mas fere sem matar
pra enquanto eu viver
no peito carregar
a dor de te perder

Um coração assim
que viu o que é sofrer
pulsa dentro de mim
e em mim vai perecer
de tanto amar alguém
assim como você
que diz que me quer bem
mas parte sem dizer

Sem cura o meu penar
pensar só faz doer
lembrar só faz sangrar
melhor mesmo esquecer
que a dor é de cortar
ferida a remexer
não vai cicatrizar

Amor, muito eu te quis
não dá nem pra expressar
o quanto fui feliz
um dia vou cantar
os versos que te fiz
só deixa a cicatriz
parar de maltratar
pra eu voltar a amar
pra eu voltar a sorrir

Meia Luz

O entardecer empalidece o mundo
e me chateia um bocado
quando desacompanhado
A luz morre diante dos meus olhos
se desfaz resvalando minha retina
e tudo fica cinza

Mais adiante vem outro
assoviando baixinho
sofrendo sozinho
pois assim que se sofre
Trocamos olhar complacente
de quem sabe o que outro sente
mas não descobriu a cura
pra todo esse sofrimento

Persiste o presentimento
de que alguma coisa falta...
Sol ardente, Lua alta
dedos trançados, mãos espalmadas
estrelas cadentes, gatos, miados
boca colada, frase encantanda
franja espalhada, minha namorada

Fica essa dor sem diluir-se em lágrimas!

Se meu corpo inflamasse
em labaredas brilhantes
o céu morno queimasse
uma noite ofuscante
faiscante explodiria
o descolorir constante
da meia-noite do dia
Mas esse instante não sonha...

O escuro eu sei que vem
a luz depois também
mas por hora me devora
essa sombra onipresente
roubando indiferente
as cores de ninguém

Atemporal

Todo o céu é um relógio imenso de veludo azul
o sol - ponteiro - rola no infinito
por vaidade das engrenages ocultas do mundo

tic-tac, tic-tac
estalido de vento
nos galhos das árvores

tic-tac, tic-tac
os carros gemendo
ganindo lamentos

tic-tac, tic-tac, tic-tac
os dentes da hora
roendo meu tempo

Ando todo sonho na estação cinzenta
os vultos velozes se agigantam
a fuligem me rasga a garganta
num torpor terrível
o corpo gelado treme, espasma
atacado de asma e medo
espreme a alma na carne
revelando nobres segredos
quando um fio azul brilhante brota dos meus olhos
despeja nos trilhos o celeste pulsante
enxente de sonho, inundo o rio e as ruas

Que exploda o sol e queime o céu
e caiam as estrelas como chuva derradeira
que o tempo vá pro espaço
com suas voltas e parábolas!

me deixa ser um pouco anacrônico
dançar com o passado, brindar com o futuro
na curva das horas, quero tudo agora
crepúsculo e aurora no mesmo segundo!

deixa a criança correr na chuva
pisar na poça e se sujar de lama
já agora a lua inflama
e a luz belisca a noite
tantas molas e roldanas
perecendo na ferrugem
tantos números e contas
vão perder-se na corrente
do contínuo presente...

tic-tac, tic-tac
tudo segue simplesmente

os relógios funcionam regularmente
passado antes de agora
futuro depois do presente

tic-tac, tic-tac
flui a vida na corrente

escuto um suspiro
e o dia morre nos meus braços!

Tormenta

A chuva tomou de assalto o céu nublado
a nuvem tingiu de cinza o algodão
o raio rasgou elétrico o universo
meu verso traz barulho de trovão

No vão entre a terra e as estrelas
cai água que alimenta vida nova
e o vento não tardou em soprar forte
levando a tempestade como prova

Uma janela aberta desampara
protege aquele que fechar a tempo
só mais um segundo o céu desaba
e acaba o prefácio da tormenta

As gotas muitas que o barranco apara
são anúncio do início de uma guerra
a luta do barraco de madeira
que não quer ser engolido pela terra

As águas não podem ser culpadas
é março, tem que fechar o verão
mas sendo elas promessa de vida
não entendo o temor no coração

A barra do vestido

Os carros vão depressa
só param nos faróis
as luzes das lanternas
eternas como o sol

Pessoas vão dispersas
cruzando meu caminho
suas faces encobertas
nubladas como o céu

Vozes perdidas
ecoam em mim
o zunido no ouvido
é anúncio do fim

As folhas de uma árvore se agitam
jornais de ontem passam voando
e giram, entre sacolas e poeira
num rodamoinho de vento

Gritos, choro infantil
ofensas, buzinas e motores
trilha sonora de um dia qualquer

Paro de súbito
à sombra de um edifício antigo
a cor do meu rosto oscila
entre o branco e o vermelho
de uma sirene em serviço
Meus olhos vêem
o que ninguém mais vê

Tudo pára,
os galhos, as folhas
as sacolas param no ar
entre a poeira
as vozes morrem
no pé da minha orelha
e a lágrima fica pendurada
na pálpebra da criança imóvel
nos braços da mãe estática

uma moeda quase toca a mão do pedinte
e um ladrão pára no ar
pulando o muro da delegacia
nem o ar se movia
mas eu vi...
Do outro lado da rua
a barra do vestido roxo
e o all-star azul
vagando nas ruas, além do tempo

Quis tocá-la, não pude
estava paralisado...
Ela passou do meu lado
e a hora voltou a correr,
eu voltei a morrer
O ladrão precisa fugir
O mendigo precisa comer

E ela, que pára o mundo
só pra tremular a barra do vestido,
precisa do quê?

Visão Noturna

O último gole
o último trago
a última ponta
do cone de sombra
que chamamos noite
em algum lugar
a cidade dorme

Os corpos cansados
repousam
seu merecido descanso
enquanto as almas
ardem e andam
ávidas atrás da poesia
perdida
que lhes foi negada
durante o dia

Me rasga o ouvido
o ranger das rodas
rolando no trilho
o canto de aviso
faz parte do encanto
um grito expressivo
que diz: tô chegando!

Embarco na pesada máquina
meu espírito inquieto
se acalma
fogo de vela minguante
se espelha na lua distante
que vai sumindo no céu
disponta o Sol no horizonte
e o dia raia aqui, dentro de mim

Essa noite
me embriaguei de vida
num prazer suicida
pra que minha alma adormecida
despertasse
e caminhasse
com as outras desgarradas
que de madrugada
deixam a casa dos homens
e somem no mundo dos sonhos

Agora
na aurora gelada
palavras explodem
da ponta da caneta
versos dispersos
que eu não invento
apenas aprendo
com as almas errantes
de luz noturna
histórias de cruz e pluma

Lágrimas de sol no céu sem lua
marias do terço nos dedos da puta nua

São só pedras no mosaico
estrelas que se repetem
minha visão terrestre
da abóbada celeste

A Lágrima e o Infinito

As estrelas caem do céu
talvez cansadas de queimar a si próprias
ou por se sentirem sós entre tantas outras
de tão solitárias se soltam do lábaro
com suas caldas flamejantes
como se o universo chorasse
lágrimas inflamadas

Meus olhos também choram
cansados de ver
tantas pessoas queimando a si e aos outros
ou por se sentirem sós
em meio a constelações de homens

Gerações perdidas de estrelas decadentes
com seus sonhos, lutas, desespero e morte

A lágrima de tão carregada desprende da pálpebra
e cai lentamente
num rastro úmido de dor e redenção
minha fraqueza heróica
escorre gota após gota, não são poucas
e aguam o céu que vislumbro

Meu pequeno ser
no meu pequeno mundo
sente, vê
uma estrela se mover
rasgar o véu, cortar o céu

Choramos juntos
o universo e eu!

Faço um desejo impossível
quero ser infinito como esse deus
o que não sei
é que a anos-luz de distância
a estrela também deseja
quer cair na terra
e ser mortal como eu

Poesia pra flor que tem medo de chuva

Eu vou comprar
sete tintas suvinil
pra pintar um arco-íris
nesse céu de azul anil
e quando vier
fininha chuva
tirintar na sua janela
não chore por ela
sua lágrima translúcida
estigma da dor
a culpa vai ser minha
se a tinta escorrer
e o mundo todo ver
que tá chovendo cor
o céu já não é cinza
e as gotas quando caem
enchem suas pétalas de amor
abra sua janela
o vento me revela
que o tempo vai nublar
mas não vai ser ventania
vai ser chuva de poesia
de alegria multicor
tire a roupa e o guarda-chuva
não precisa levar blusa
é a hora da magia
sob as nuvens com sabor
ai meu deus que bom seria
se eu acreditasse em deus
acredite eu pediria
que pudesse ser seu dia
mas fui noite, minha flor!

Minha Terra

Repousa os pés na estrada
a cada passada
o nosso descanso é cruzar fronteiras

Minha terra tem palmeiras
mas eu nunca vi
tem palmares, tem quilombos
xavante, tupi

Minha terra tem aldeias
mas eu nunca vi
onde o vento é quem semeia
o alimento guarani

Minha terra tem lugares
que eu nunca fui
densas matas, tenros vales
onde a água flui

Minha terra tem estradas
minha terra tem estribos

Sou índio da cidade
desertor de minha tribo
ser urbano jogado no mundo
ser mundano perdido na urbe
um sulamericano perdido
que não quer ser mais um no cardume

Sou vagalume, sou vagalume
vejam minha luz!

Essa terra tem mil deuses
um deles que me conduz
essa terra tem canções
essa terra tem cantigas
mas o ouro dos brasões
veio abrir nossas feridas

Essa terra é muito antiga
essa terra é muito antiga

Repousa os pés na estrada
a cada passada
o nosso descanso
embalado pelo canto
em qualquer canto
desbravando os brasis
se as veias estão abertas
seremos a cicatriz

Os Vasos

O verso é um vaso sagrado
com tampa e adorno incrustrado
se aberto assim com cuidado
revela a palavra encantada
a muito tempo aguardada
que vai se sentar no poema
bela como um diadema
feito um cristal burilado

Mas se o vaso ao chão for lançado
em mil pedaços partido
seus cacos forem esmagados
seu pó então diluído
basta ao poeta apanhá-lo
bebê-lo em taça de vinho
saborear cada gole
engolir bem devagarinho

Tomai nas mãos e bebei
o rubro sangue da poesia!

Come a carne do verso
deixe-o embeber seu corpo
circular nas suas veias
numa profusão epilética
em cada cadeia genética
cada elétron fundido
que o coração semi-morto
bata quase explodindo

O poeta não é humano
nem nada tem de divino!

Mas diferente dos sábios
que arrancam tudo do vaso
a canção lhes queima a alma
num ardor que nunca acalma
numa paz que não serena
e com simples gestos de afeto
em noites quentes e amenas
o sonhador delirante
descobre a lágrima errante
beleza e dor: seu dilema
assim se sente mais vivo
e vira a própria poesia
como as daquele vaso
que nunca foram escritas

Nessa hora
a carne do poeta se entrelaça
no insólito mistério das palavras
o templo incabável do etéreo
agora se quiser
ante a magia que se encerra
provar da fantasia que há nos livros
esquece o vaso
deixa o verso vagar livre

Devorem o poeta ainda vivo!