quinta-feira, 15 de julho de 2010

Pertencimento

Esse chão de madeira macia ou pedra chapada
que tão humildemente recebem meus pés sem sapatos
Esses milhões de hectares, aquelas montanhas
e entre elas, entre suas pernas - o vale
e toda a vida profusa no veio dágua, filete de sol
correndo as manhãs geladas. Esses animais serenos, comendo a erva da terra
se refazendo do barro, se comendo aos berros
sem qualquer embaraço... Esse imenso terreno baldio
e suas árvores de mil braços, cada uma com mil olhos
verdejantes sensíveis ao vento e também suas sementes
e seus frutos suculentos, ahhh, pros meus dentes!
As moradas dos homens, de ferro e cimento de pau
e palha de telha e vidro de papelão. Cada pequena
janela mirando um retalho de paisagem
e também cada paisagem com todas as suas janelas!
Esses campos arados e a ceifa terrível, os caminhões
quase sempre tombando aos navios imensos, hidras
rasgando o vento sobre a lâmina dágua! Essa água
toda de sal e a água viva das nuvens e a água virgem das fontes
e as pontes sobre os rios que as cruzam! Todo, todo vinho das adegas, segredos
guardados pelo beijo das rolhas, a alma das uvas e os vinhedos.
Os sabores das coisas, das coisas todas as coisas sem alma.
O terno elegantíssimo, a bengala bem polida, o chapéu altivo,
tão engraçado! As fachadas coloridas dos puteiros
que as crianças amam mas seus pais frequentam.
Essa cama de areia no lábio do mar e as ilhas erigidas no nada,
as quilhas engastadas no fundo do oceano. A reunião das estrelas,
os satélites vagantes na espiral do delírio humano, os mil vezes
cem bilhões de anos do cosmos colorido!
Toda e qualquer cantina, cantinho de gula, doces caseiros,
celeiros de milho, a comida lançada ao lixo!
Os livros adormecidos nas estantes lustrosas, a poesia e a prosa
de vinte séculos, essa imensa síncope de imersão ciclópica!
Os corações das multidões maciças, das solidões voláteis.
Aquelas catedrais de altares fúnebres e as bacias douradas
de água benzida, que boas pra matar a sede. Todas as riquezas
bíblicas, Salomão cantou-as, vede!
Também a arte dos povos, a tinta dispendida em visões obscuras,
incríveis e puras, tão fúteis e amáveis. Os inumeráveis salões
de baile e os pingentes pendentes sobre o seio das mulheres,
pedra opalescente, lágrima da rocha, pérola dormente
à mão do ourives desabrocha.
A fênix dos penhascos cantando a morte do fogo,
a revoada dos pássaros de um verão ao outro.
A campina dos leões, a estepe dos lobos, a sebe do esquilo
e a ravina do corvo, qualquer bioma possível e a biosfera toda!
As pirâmides espetando o céu
na mata e no deserto, não tão notáveis quanto os castelos
dos insetos - colméias suspensas, galerias subterrâneas.
E as miragens litorâneas na hora que o sol evade!
Os territórios sem grades, a evaporação das cercas e o carnaval
das cidades. E mesmo a dor subcutânea e insondável, tão comum
à alma humana, a dor vã e indevassável...
terei tudo tudo
todas as coisas
e só porque não comprarei nada
e de nada serei dono!

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